quinta-feira, junho 14, 2007

A porta


Logo que cheguei no escritório, o meu colega, olhando-me com uma certa pena, comentou : você está “bem” caidinha hoje! Aposto que leu os jornais e assistiu os telejornais da manhã! Respondi desalentada: Antes fosse! Assim botava a culpa na Guarda-Civil-Metropolitana que encontrou mais um bebê no lixo. Nada disso meu caro! Estou um pouco desidratada… acho que comi um peixe estragado na sexta-feira - dor de barriga e que tais foram meus visitantes este fim de semana. O meu colega fez mais algumas perguntas e diagnosticou: pegou um rota-virus.
Feito o diagnóstico - antes que eu fosse consultar um médico - tratei de pesquisar esse novo elemento que participava do meu dia a dia. Na primeira pesquisa fiquei animada, pois o título dizia que a Secretaria de Saúde distribuía o remédio de graça (atualmente até injeção na testa eu tomo, se for de graça). Mas, infelizmente, não tinha nenhuma graça: o tal remédio era distribuído para menores e eu já sou mais do que “de-maior”. Na minha pesquisa encontrei tantos vírus, mas tantos, até vírus da mente (acho que faz tempo tenho um alojado nos meus neurônios: virus-cronístico), que acabei desistindo; sem contar que o tal rota-virus é muito promiscuo, até em galinha dá e se é uma coisa que eu detesto é a promiscuidade!Convencida do diagnóstico absolutamente errado, não resisti e considerando que o meu colega ainda me olhava penalizado, respondi: não tenho nenhum rota-virus, não. Foi o peixe mesmo! Meu colega encerrou o assunto: até pode ser, mas você esta bem caidinha... Esse “bem” foi tão acentuado que, na falta de definição para o meu “mal” (adoro paralelismo antitético), resolvi dar uma olhada no “bem”, já que dos males o melhor.Fui mais uma vez atrás do Aurélio. “Bem” sozinho ou em parceria é uma expressão maravilhosa.Revisar todas as definições “do bem” (qualidade atribuída a ações e obras humanas que lhes confere um caráter moral, austeridade, moral, ventura, favor beneficio, pessoa muito querida, amada) me fez um bem danado. Fiquei “de-bem” com a esperança e num “bem-estar” incrível. Poderia ser diferente? Nesse estado fiz uma ligação com um artigo que li faz alguns dias escrito por Selene Ramos (formada em teosofia e membro da Associação Brasileira de Feng Shui) no qual ela aponta a porta como o elemento mais importante de uma casa,pois representa a ponte entre o interior da residência e o mundo externo. Apenas no sentido de dar entendimento ao meu texto: Feng Shui é uma arte antiga chinesa de criar ambientes harmoniosos e a localização de energias . Mas voltando a minha conexão com o bem e a porta. Às vezes um simples olhar, ainda que num dicionário da língua portuguesa, é a porta para a harmonização. Hoje, não só abri a minha porta, mas fiz a ponte entre o meu mundo exterior e interior e o saldo foi positivo. O ruído das buzinas lá fora continua como sempre, numa sinfonia louca e desafinada, ouço vozes desencontradas, passos anônimos , uns mais apressados, outros mais lentos... frio, calor, vidas misturadas pelas calçadas, sorrindo, chorando, vontade de viver, morrer, duetos, tercetos, quartetos nem percebidos, exclusão social cantando aos quatro ventos em cada esquina, mas eu, aqui dentro, sou outra: estou de “bem” com o “bem”. Talvez seja esse o único caminho para se não aceitar, pelo menos não ficar de mal com a vida, e entender que a bestialidade humana existe e persiste.E sobreviver, mesmo sabendo que um ser frágil é jogado no lixo.
Legítima e humana defesa este meu estar de bem?
Sei lá!

texto:Sandra Falcone
foto:Gustavo Lanfranchi