quinta-feira, abril 19, 2007

Minha janela

















Quantas vezes fui até a janela para olhar, com olhos de ver? Poucas. Normalmente para ver a fluência do tráfico ou se estava chovendo. Um olhar egoísta, pensando no meu conforto. A janela que mais olho é a do meu escritório, que fica na avenida Paulista. No entanto, sempre que por alguma razão meu olhar, como agora, é atento e consciente, meu mundo interior é atiçado e eu me sinto mais humana. Parte desse todo de alguéns que caminham, apressados. Onde a única coisa homogênea que noto são as calças jeans, porque cada um é único, singular. Não só no modo de andar, de carregar pacotes e pastas, de gesticular, mas no modo de ser. De lidar com seus fracassos, sonhos, acertos, ideais. De sentir as dores que circulam à sua volta e as suas...

Não muito tempo atrás, a quantidade de anúncios e outdoors deixava-me incomodada. Poluição visual, lavagem cerebral – dizia eu. Um dia percebi que tudo era uma questão de ótica. Hoje não fico incomodada, ao contrário, penso que tudo é o colorido, às avessas, da esperança! Alguém pode estranhar esta esdrúxula comparação, mas se pensar um pouco, vai ver que não é. É lógico que tudo que está aí exposto, uma parte ínfima da população pode se atrever a comprar (eu? nem pensar!), mas nada impede que isso nos faça sonhar, e sonhar, como disse Quintana, é acordar pra dentro. E é isso que precisamos – acordar pra dentro.

Já fui vítima dessa esperança! E aprendi com ela a acordar pra dentro. Estava mais pra lá do que pra cá, querendo pagar alguma coisa que não podia pagar, caminhando em direção a um banco para adiar o vencimento de um empréstimo. Provavelmente, alguma outra janela que me olhava percebia meus passos cansados e meus ombros caídos. Antes de entrar no banco, olhei ao acaso pra cima e vi um anúncio de um produto, num azul intenso... olhando pra mim. Não me lembro do produto, apenas do azul, daquele azul que lá do alto falava alguma coisa para mim. Voltei nos passos, não entrei no banco, não paguei a conta (que não podia pagar). Sabe o que fiz, antes de ligar para o gerente do banco e adiar a entrevista? Pintei uma aquarela todinha em azul e escrevi: minha esperança é azul! A aquarela – de péssima qualidade artística – guardei, como um relicário, na gaveta da minha mesa.

Sempre que meus ombros caem e meus passos ficam cansados, tiro da gaveta a minha esperança. É assim que me vejo olhando, agora, da minha janela, com minha esperança azul e teimosa: a pobreza que verifico, a grande diferença e exclusão social, misturada com a sujeira e o lixo das calçadas, na alma financeira do país, neste conglomerado de bancos, carros importados, camelôs gemendo. Todos sintonizados na mesma dicotomia cotidiana ... E uma controversa sensação de pluralidade e absoluta singularidade me invade. Tenho vontade de gritar: eu estou aqui ! Como se pudesse de alguma forma misturar-me em cada um daqueles corpos anônimos, numa projeção geométrica de solidariedade humana, ainda que física.

Do outro lado da avenida percebo um outro anônimo na sua janela. Apenas um vulto como eu ? Como diria Manuel de Barros: preciso do desperdício das palavras para conter-me.



Sandra Falcone