quarta-feira, agosto 05, 2009

A voz que veio do frio !


Fazia frio naquele sábado em Santos - onde costumo passar os meus fins de semana. À noitinha resolvi dar uma volta e caminhei numa ruazinha perto da minha casa que, por volta das oito horas da noite, estava deserta. Como uma boa paulistana sujeita as chuvas e trovoadas da violência cotidiana,fiquei um tanto preocupada, mais fui seguindo meu caminho, atenta.

De repente uma voz de menino vinda do frio: moça me dá um real?

Não sei explicar, mas um pavor imenso tomou conta de mim, e me vi no meio da rua, gritando (alguma coisa que nem eu mesma compreendi) . Gritei sem mesmo olhar para a voz que vinha do frio, com um medo brutal, de algo que eu não sabia dizer. E no meio daquela gritaria minha ouvi outra vez a voz que vinha do frio: moça, não sou ladrão, não. Sou trabalhador, apenas não consegui engraxar nenhum sapato hoje e quero um real pra voltar pra casa.

Foi como uma ducha gelada (ou quente?) naquela ruazinha, só então olhei para a voz que vinha do frio e o que eu vi?

Vi um menino, perto dos dez anos, com uma caixa de engraxar sapatos enorme às costas e um olhar misto de tristeza e revolta.Não sei expressar nas palavras aquela figura criança, naquele frio, em mangas de camiseta puída,vertida pelo peso da caixa de engraxar sapatos, dedos roxos, metidos num par desgastado de havianas, olhando pra mim, com aquele olhar silencioso...Fiquei tão absolutamente envergonhada, vexada, arrasada com aquele olhar que, imediatamente, vendo o que tinha feito,corri atrás do menino pedindo desculpas. Mas o menino não me deu ouvidos e começou a andar mais rápido.

Um quadro incrível aquele: o menino andando depressa, carregando a caixa e eu, correndo atrás dele: perdão, vem aqui, por favor!Corria atrás do menino, intimamente justificando o injustificável, colocando a culpa na violência cotidiana que me fazia sentir medo do medo. Que me fazia agir de forma tão brutal como a própria brutalidade da violência que eu tanto temia, desculpando-me de forma simplista: não tive a intenção...

Finalmente, alcancei o menino e coloquei minhas mãos nos seus ombros. Nesse momento ele parou nos olhamos e eu dei o real pedido. Ele, com um olhar de profunda piedade, sem uma palavra recusou o real com o não mais cansado que já presenciei.
Depois, lentamente, arrastando as chinelas, continuou seu caminho, mais vergado ainda, até agora não sei, se pelo frio, pela caixa de engraxate, ou pelo peso da piedade que sentia de mim.


Texto e imagem: Sandra Falcone