quarta-feira, setembro 03, 2008

flor

Por séculos e séculos sempre fora uma flor. Em função da sua fragilidade e curta vida, ia e voltava, em todas as estações, nos diversos hemisférios. Com tanta experiência tornou-se a flor-mor do Olimpo. Quando suas colegas mais novas perguntavam a razão em insistir tanto em ser flor e jamais ter solicitado que a fizessem voltar numa outra forma de vida, sorria.
Já há muitos séculos tinha direito a outras experiências no ciclo da evolução. Mas não aceitava, queria ser flor. Experimentou de tudo, todos os perfumes florais, todas as formas, cores. Violeta, gardênia, rosa, lírio, margarida, flores silvestres. E sempre que voltava, o Deus da Evolução, a seu pedido e por justiça, criava outras flores, de modo que pudesse experimentar não só várias fragrâncias e formas, mas viver nos mais variados jardins, simples, suntuosos, abandonados. Chegou mesmo a nascer como cacto num deserto causticante.
Jamais voltara de suas jornadas cansada; ao contrário, sempre transluzindo vida, na sua mais pura e verdadeira essência.
Naquela tarde, esperava o seu retorno e, mais uma vez, quando perguntada, respondeu: quero voltar flor. O Deus da Evolução, olhando todas as formas de vida em flor que criara em função dela, estava combalido, não tinha mais o que inventar a não ser uma flor já vivida.
A Flor, no entanto, não concordou. Insistiu em uma nova forma, outra fragrância. O Deus da Evolução pensou por dois séculos e nada. Não sabendo o que fazer, pediu ajuda ao Deus da Reencarnação.
Confabularam mais uns pares de séculos e, finalmente, tomaram uma decisão.
Ela chegou como sempre, esplendorosa, pois se tornara a síntese de todas as flores do mundo. Era impossível não reverenciá-la. Até os Deuses assim o fizeram. O Deus da Reencarnação, com voz doce, falou: Flor, tu és a essência! Resumes em ti, por todas as vidas passadas, o que há de mais belo no mundo dos homens: delicadeza , fragrâncias,cores.Com esta tua última experiência , em que nasceste de uma pedra solitária, o ciclo teu de evolução está completo. Sempre respeitamos o livre-arbítrio de cada ser! Foste flor por toda a evolução natural dos seres deste mundo e, agora, tens duas opções – ou ficas de vez aqui ou voltas em outra forma de vida. A Flor pediu um tempo, queria pensar de como voltar com a mesma essência.
Depois de muita reflexão foi até o Deus da Evolução e informou: quero voltar mulher, nas não quero nascer criança, nem menina, essa experiência eu tenho em cada flor que encarnei, quero ir mulher já feita e voltar anciã. O Deus da Evolução retrucou: não posso mudar o ciclo da vida dos humanos, tens que nascer de alguém e passar por todos os ciclos de vida desse alguém – criança, menina, adolescente, adulta, anciã, entendes? A Flor ainda tentou argumentar, mas o olhar do Deus da Evolução era tão determinante que desistiu. Porém, antes, perguntou: posso escolher então o tipo de mulher que serei no aspecto, caráter, alma? O Deus da Evolução respondeu: já escolheste faz séculos e séculos. Tu terás a essência de todas as flores em que reencarnastes. O mais será o teu livre-arbítrio, como mulher. Tranqüiliza-te. Essa essência se manifestará em ti quando, como mulher, tiveres a condição de entendê-la.
E assim foi! Nasceu prematura no inverno (sua gestação terminaria na primavera), muito pequenina e frágil e extraordinariamente bonita. Os pais, orgulhosos do seu rebento, não tiveram dúvidas quanto ao seu nome: Flor. E quando perguntados pela escolha diziam: é frágil, delicada e linda como uma flor.
Flor cresceu naturalmente, passando por todas as experiências de ser humano que era: levou um choque elétrico aos dois anos, quando enfiou o dedo na tomada, quebrou a boneca preferida aos três anos, aprendeu a cantar atirei-o-pau-no-gato aos quatro, ler aos seis, passou batom da mãe nos lábios aos sete, quebrou o braço andando de patins aos dez, ficou mocinha aos treze, ganhou o primeiro sapato de saltinho aos quinze e assim foi, vivendo sua infância e adolescência. No entanto, a maioria das pessoas que a conheciam achavam-na esquisita. Nunca tivera as reações naturais de uma menina relativamente aos meninos. Dava-se bem com todos, mas jamais se apaixonou por nenhum. Tinha uma preferência quase doentia por flores.
Quando chegou o momento de escolher a profissão não teve dúvidas: botânica. Logo construiu uma própria estufa e lá passava seus dias, plantando, fazendo experiências, chegou a criar uma rosa-margarida multicolorida. Margarida era a sua flor preferida, pela delicadeza da forma e pelo cheiro que não recendia, mas que Flor tinha certeza existir, e que um dia o seu olfato seria sensível para percebê-lo.
O tempo inexorável foi passando, sem que ela se desse conta. Era feliz com as suas flores. Poucos amigos e nenhum namorado. Essa sua solidão incomodava aos seus, não era possível uma mulher tão linda, tão culta, tão delicada, não ter nenhum interesse pelo sexo masculino. Quando alguém mais atrevido perguntava, Flor sorria e dizia: tudo a seu tempo! Tinha convicção plena de que era predestinada para um amor único e verdadeiro. O seu amor teria a beleza das flores que tanto amava e para si mesma repetia: vou amar quando encontrar o meu amor.
E o encontrou. Numa tarde de sábado. Quando ouviu sua voz, uma emoção profunda, abarcante, tomou conta de todo o seu ser, físico e espiritual.
Amou-o instantaneamente, sem dúvidas, na convicção plena. No entanto, algo no seu coração dizia que ele não estava pronto para viver esse amor. No princípio não deu importância, amava-o. O mais não importava. Mas a convivência mostrou o seu engano. Sentia isso no intimo, mas não assumia e rogava aos Céus que ele não sentisse. No entanto, ele sentiu. Percebia a luta interna dele. Calava-se. Amava-o demais para interferir. Um dia acabou.
Sabia do sofrimento dele, entendia... Deixou que se fosse.
O tempo continuou seu caminho, marcando-a. Mas o seu amor continuava ali, dentro dela, vivo, insistente. Perdeu todo o interesse pela vida, viver não era mais o seu objetivo. No entanto, sem saber, seu pedido tinha sido aceito, viver até chegar a anciã. Chegou. Era primavera. O sol lá fora tímido queria entrar. Muito fraca, Flor foi até a janela, abriu as cortinas e, surpresa, sentiu um perfume sutil, jamais sentido. Olhou no quarto, nada ali poderia ter aquela fragrância, olhou para o parapeito. Jogada, jazia uma margarida .
Com muito respeito e delicadeza, pegou-a entre as mãos e com espanto verificou que, finalmente, tinha a sensibilidade para sentir o seu perfume.
Nessa tarde, quando entraram no seu quarto, encontraram-na morta. Nas mãos uma margarida, que parecia ter sido colhida naquele instante e, estranhamente, um perfume leve, inebriante sobrevoava o quarto.
Flor retornou ao Olimpo e, como sempre, ficou na Sala da Evolução, pronta para mais uma reencarnação. O Deus da Evolução, com um sorriso compreensivo, perguntou: e então, o que me diz dessa experiência? Flor respondeu: maravilhosa, até me arrependi de não ter pedido para voltar mulher antes, por isso quero voltar de novo mulher. O Deus da Evolução, com a determinação da verdade, suavemente respondeu: não, minha querida, o seu ciclo de evolução termina aqui. Não voltas mais, nem como flor, nem como mulher. Flor, desesperada, aos prantos: por favor, me atenda, o meu amor está lá... preciso voltar. O Deus da Evolução, mais compreensivo ainda, acariciando-a com muito amor: não, minha linda, cumpriste o teu ciclo. Ele, ainda não!
Flor, na sua sabedoria de alma, entendeu perfeitamente o significado das palavras do Deus da Evolução e resignou-se... Continua lá no Olimpo, esperando o seu amor. Quando a saudade fica insuportável, Flor chora lágrimas de orvalho que sempre vão pousar nas delicadas pétalas de uma flor. Quando pode direcioná-las, sempre procura uma margarida.


Dedicado à Pequenina

Sandra Falcone