segunda-feira, dezembro 03, 2007

guarda-chuva

Chove!

Hoje, como todas as tardes nesse verão de São Paulo chove e centenas de guardas-chuvas vem e vão, colorindo a Avenida Paulista. Vermelhos, amarelos, estampados, pretos. Gente apressada, nos pontos de ônibus, preocupadas com o que vão encontrar em casa, móveis boiando, aquele quartinho tão sonhado alagado. Outros simplesmente preocupados com o sapato novo de “grife”, tanta incoerência nas ruas desta cidade que tanto amo e nem por isso deixo de senti-la, à cada instante, com os seus contrates.

Guarda-chuva, quando eu tinha por volta de nove anos, era coisa de gente rica e eu era pobre.

A família tinha apenas um guarda-chuva: horrível, preto, enorme, masculino. Ganhamos do meu avô (tinha um igualzinho). Entregou-nos com pompa e recomendações: artigo de luxo, o melhor que existe por ai! O guarda-chuva foi pra cima do guarda-roupa e só era usado em casos de extrema necessidade, ou seja, quando o céu mandava brasa. Dilúvio! Nossa!Quanta responsabilidade quando chovia e eu levava para a escola Grudava nele feito chiclete. E que alívio quando voltava pra casa e toda orgulhosa mostrava pra minha mãe: intacto!Minha mãe sempre dizia: você é uma mocinha muita linda e cuidadosa.O pobre guarda-chuva foi envelhecendo, perdendo o brilho, capenga, uma ou duas varetas quebradas.
Minha mãe colocava um alfinete e pronto, o bichinho cumpria metodicamente sua missão.

No início das aulas cada professora dava uma listinha com o material do ano letivo e todos compravam no mesmo lugar - uma pequena livraria ao lado do Grupo Escolar.Bastava dar a classe e a professora, e já estava tudo separado num pacote.
Era uma delicia aquele pacote! Ficava ansiosa para voltar pra casa e olhar o que tinha dentro: encapar os cadernos... fazer uma forzinha logo na primeira folha do livro e do caderno e escrever meu nome....dava uma sensação de posse do saber. E eu me sentia muito importante!Chovia naquele dia, muito.

Minha mãe deu o dinheiro para eu comprar o meu material e o da minha irmã. Antes de começar a aula fui comprar. Só tinha o meu pacote. Voltei no fim da aula, o pacote da minha irmã continuava ausente e a chuva tinha ido embora.


Sempre gostei do cheiro de chuva quando ela vai embora.O ar fica alegre, e eu acabo ficando também. Até hoje!Bem, com o dinheiro desocupado na minha mão, e um puxa-puxa fazendo oi, uma groselha sorrindo e a longa volta para casa tendo por companhia um algodão-doce, branquinho, branquinho... eu e a mana não resistimos.O dia era lindo, claro, azul. Logo eu estaria abrindo o meu pacote, colocando meu nome, fazendo a florzinha. A boca lotada de doce. O algodão-doce esperando! O que mais eu poderia desejar? Era completamente feliz. Tão feliz que comecei a pular.

Pulei tanto que me desequilibrei e para não cair me apoiei no guarda-chuva e, sem querer, enfiei o pobrezinho num buraco...quando puxei de volta, fiquei com o cabo e algumas varetas, todas estrumbilhadas. Meu Deus do céu! Acho que foi a primeira vez na vida que fiquei com a brocha na mão. Fico ainda, mas já tenho uma certa experiência.A minha única preocupação era o guarda-chuva, mais nada. Como contar para minha mãe! E o meu avô? Bem, o mal estava feito, enfrentei. Imagino a minha cara de ré quando cheguei em casa, porque não precisei dizer nada.


Minha mãe foi logo perguntando: o que aconteceu?Eu, mais do que depressa, mostrando as varetas : foi sem querer, enfiei num buraco pra não cair e ficou assim...Que sorriso lindo deu quando percebeu que não havia acontecido nada comigo.Aquele sorriso compensou uns cascudos que eu e a mana tomamos quando ela descobriu que o dinheiro do material havia virado picolé....

....


O tempo passou e a China chegou, com todo o trabalho escravo que nos permite comprar guarda-chuvas a R$5, 00, em qualquer esquina.Mesmo sabendo disso, compramos, porque chove.

Falando em chuva tem uma aqui na minha janela. Escorrendo gotinhas delicadas e ritmadas. Cantando ou chorando?

Sandra Falcone